Do descaramento e da regulamentação divina
Até ontem, Portugal sempre me pareceu um país pleno de salvadores, de direita e de esquerda (pese embora a preponderância desta), proclamadores das suas próprias virtudes e glória, convictos do seu destino e da necessidade dos portugueses neles.
Hoje sei que estava enganado. Os deuses abandonaram o Olimpo. Residem agora em Olisipo. E na sua divina previdência, desprovidos que quaisquer complexos e visando evitar mal-entendidos, avisaram os portugueses quanto à sua inimputabilidade.
Curiosamente, nem Costa nem Centeno deram a cara. Por um instante, coloquei a hipótese de ter sido por não conseguirem disfarçar o rubor da face, mas logo caí em mim. Que tolo fui. Os deuses não tem vergonha!
O ditame do Governo de Portugal, expresso através do seu mensageiro, Augusto Santos Silva, informou os portugueses que códigos humanos, como o Código de Conduta dos Trabalhadores da Autoridade Tributária e Aduaneira ou o Código do Procedimento Administrativo e todos aqueles que se referirem a responsabilidade dos titulares de cargos públicos, não são aplicáveis aos membros do Governo. Mais. Perante esta perturbadora ideia, o Governo irá elaborar um código de conduta, isento de qualquer formulação moral ou ética, que seja capaz de regulamentar o seu divino comportamento. Tanto o do passado como o do presente e do futuro porque para os deuses não há tempo. E os deuses que nos governam, particularmente estes, reincidem frequentemente neste tipo de comportamento.
Como tal, para o executivo não existe qualquer motivo para afastar os responsáveis pelas pastas dos assunto fiscais, da internacionalização e da indústria. Estes, não só tinham que receber estas pequenas dádivas como as mesmas decorreram duma obrigatoriedade de quem as ofereceu. As oferendas dos mortais (Galp) aos deuses (membros do Governo) são normais e costumeiras, sendo integralmente irrelevante qualquer conflito de interesses entre ambas as partes. Assim, se perdas existirem para o Estado, o Governo está seguro que os portugueses as aceitarão de cara aberta e que as suportarão com alegria no coração.
Ora, a escolha deste arauto não é inocente. Santos Silva, Ministro da Defesa do XVIII Governo Constitucional, tinha um cartão de crédito com um plafond mensal de 10 mil euros.Quando questionado sobre este cartão, Santos Silva confirmou a sua existência, mas acrescentou que não o tinha solicitado e que desconhecia o seu plafond. Todavia, utilizava-o. No total, os cartões atribuídos à sua tutela atingiam o plafond de 60 mil euros mensais. Para além disso, o Ministério que Santos Silva tutelava foi o único que não apresentou a documentação solicitada pela Associação Sindical dos Juízes Portugueses (ASJP), para o apuramento de eventuais responsabilidades.
Não estranhem! A lei só obriga os mortais. Os deuses não se submetem a ela. Talvez por isso é que Santos Silva, já como membro do actual executivo, tenha voltado a infringir a lei e que tenha resolvido o caso com uma nova alegação de desconhecimento da norma e com o reembolso da diferença dum bilhete de classe executiva para um de classe económica.
Até ontem pensei que era indispensável para um membro do governo (e dos restantes órgãos públicos) observar e cumprir a lei.
Hoje sei que estava enganado. Basta-lhes desconhecer a ética, a lei e fazer o reembolso!
Recent Comments