Na base do conhecimento está o erro

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Defesa (e Segurança)

O liberalismo jamais deixou de se preocupar com a segurança.

O liberalismo não advoga a eliminação do Estado, nem da autoridade pública. É certo que preocupação liberal começa pelo indivíduo. Mas o Estado, as entidades e instituições políticas, económicas e sociais, até porque sem indivíduos não existem, também são objecto de consideração pelos liberais. Aliás, no contexto da teoria e a práxis liberal, a atenção dada ao Estado, à sua representação e atribuições, foi primordial. São as Constituições que limitam o poder do Estado e que garantem as liberdades aos cidadãos. A observância do Estado de Direito e da Separação dos Poderes é essencial para a segurança dos indivíduos.

Neste sentido, a observação dos mesmos pressupostos no contexto das relações internacionais é perfeitamente inteligível. Assim, pese embora não seja possível de ultrapassar as circunstâncias inerentes às formulações de Jean Bodin, o liberalismo, respeitando a autonomia dos Estados, defende o direito internacional que visa a paz e a segurança internacional, começando pela Carta das Nações Unidas. O respeito pelos convénios internacionais de colaboração, cooperação e até de integração que visem a defesa e a segurança internacional, ao revelarem uma preocupação com a segurança dos indivíduos, só reforçam os fundamentos do liberalismo. Ou seja, tal como o faz no contexto nacional, o liberalismo também se opõe ao abuso do poder e da força no âmbito internacional.

Por isso, a defesa, e a segurança a ela adstrita, é uma condição sine qua non para os liberais. Para a manutenção dos elementos do Estado e a prossecução dos seus fins, é imperioso que a defesa seja entendida como uma função de soberania. E é assim que os liberais a entendem.

Defesa e segurança são dois conceitos distintos, mas conciliáveis e interdependentes, que, ao considerarem as razões do Estado democrático, contemplam e legitimam no âmbito destas o uso legal da força para a conservação da ordem social democrática. Pela Segurança, o Estado procura criar as condições que possibilitem ao indivíduo viver em liberdade, usufruindo do bem-estar em comunidade, livre de ameaças. Já a Defesa respeita aos instrumentos e mecanismos que possibilitam proteção, englobando todas as circunstâncias estruturais e conjunturais, tangíveis e intangíveis, desde a manutenção da paz à resistência a um ataque externo.

Sou apologista de que o Estado deve honrar os seus compromissos, nomeadamente, no que respeita à defesa, aqueles que foram estabelecidos com a NATO. Mas isto não é suficiente. As Forças Armadas têm de ser objecto de um reforço orçamental que vise a adequação das mesmas às realidades, quer de infraestruturas, quer de recursos humanos como também de objectivos estratégicos. Por exemplo, sendo Portugal classificado como um país arquipelágico, é natural que o investimento na Marinha e Força Aérea deva ser prioritário (até pela dimensão da nossa Zona Económica Exclusiva).

Sendo a defesa uma função de soberania é essencial para a existência e afirmação do Estado, é vital que não continue a ser descurada como tem sido. Para além disso, é primordial que os investimentos sejam executados e fiscalizados de forma a evitar o desperdício.

Com a invasão russa da Ucrânia, a realpolitik na Europa acabou de ganhar outra preponderância. A NATO, da qual muito nos honra fazer parte, não é suficiente com apenas a capacidade dos norte-americanos. A NATO precisa de ter um pólo europeu mais fortalecido e Portugal não pode deixar de fazer a sua parte.

A avaliação feita no âmbito da NATO Defense Planning Process, revelou que Portugal tem falhas nos recursos humanos (uma carência superior a quatro mil efetivos; o Governo português tinha indicado seis mil) e deficiências na prontidão dos meios, devido ao contínuo desinvestimento nos três ramos das Forças Armadas (desde 2010, o Exército, a Marinha e a Força Aérea perderam €127,4 milhões nos seus orçamentos de “operação e manutenção”).

Obviamente, como o nível de recrutamento também tem vindo a diminuir, o treino, o manuseamento e a manutenção dos equipamento não vai ser afectada apenas pela falta de verbas. Com menos 36% de verbas e menos recursos humanos é impossível que a programação para a pronta utilização dos equipamento não seja afectada. Note-se igualmente que muitas das infraestruturas das Forças Armadas estão degradadas, que não há um programa de reequipamento consistente e que os programas de manutenção não são cumpridos.

Em 2014, na Cimeira de Gales, Portugal assumiu responsabilidades que ainda não cumpriu plenamente. Há poucos dias, na Cimeira da NATO em Bruxelas, o Primeiro-ministro acabou de as reiterar dizendo que os Estados-membros da NATO se comprometeram a atualizar o seu plano de investimentos em Defesa até à cimeira de junho (Madrid), indicando que Portugal irá aumentar o seu investimento em equipamento, recordando que já em 2018, os Estados-membros tinham assumido um compromisso escrito quanto à progressividade do reforço do orçamento em matéria de defesa. Que fez o Governo de Portugal?

A proposta de Orçamento de Estado chumbada em outubro passado continuava a considerar a defesa como um parente pobre entre as políticas públicas. Algo me diz que assim continuará a ser.


Quem pagou os custos da EMPORDEF?

Resultado líquido consolidado: 57,2 milhões de euros negativos; capital próprio consolidado: 73,9 milhões de euros negativos; passivo consolidado: cerca de 827 milhões de euros. Accountability? Zero!

Texto publicado n’ Observador – 26 de Fevereiro 2021

Programa do XIX Governo previa a reestruturação das indústrias da defesa, visando a sua sustentabilidade e privatização. Este propósito já constava no Programa de Estabilidade e Crescimento (PEC) 2010-2013 que, para esse fim, preconizava quatro processos de alienação, a saber: Estaleiros Navais de Viana do Castelo, S.A. (ENVC), EDISOFT – Empresa de Serviços e Desenvolvimento de Software, S.A., EMPORDEF — Tecnologias de Informação, S.A e EID – Empresa de investigação e Desenvolvimento de Eletrónica, S.A.

No contexto da conclusão do ciclo de privatizações, que conduziu à alienação parcial de participações sociais na EDISOFT e EID – que passaram a ser empresas privadas com capitais públicos (e onde o Estado passou a ser minoritário, sem funções de gestão corrente) –, à subconcessão dos ENVC, e não tendo havido interessados na aquisição da EMPORDEF TI, em 2014, deu-se início à liquidação da holding das indústrias da Defesa, EMPORDEF, S.G.P.S., S.A., cuja atividade consistia na gestão das participações sociais detidas pelo Estado em sociedades ligadas direta ou indiretamente às atividades da Defesa.

Importa recordar que as decisões de privatização das participações sociais detidas pela EMPORDEF e sua subsequente liquidação, resultaram do acordo feito com a Troika e, para tal, através da Resolução do Conselho de Ministros (RCM) n.º 42/2014, que expunha a situação calamitosa da empresa – um resultado líquido consolidado de 57,2 milhões negativos, um total de capital próprio consolidado de 73,9 milhões de euros negativos e um passivo consolidado total de cerca de 827 milhões de euros, nos quais se incluíam 200 milhões de euros de financiamento obtido de curto prazo – situação que foi determinante para o início do processo conducente à dissolução e liquidação da empresa.

Por sua vez, a RCM n.º 50/2015, de 17 de julho, para além de indicar um prazo de 120 dias para a liquidação e que os direitos e responsabilidades remanescentes da EMPORDEF seriam transferidas para o Estado, via Direção-Geral do Tesouro e Finanças (DGTF), também determinou um prazo de 15 dias para a dissolução da EMPORDEF e que na sua liquidação e extinção fossem seguidas estas linhas de orientação:

  • Promover a dissolução da DEFLOC – Locação de Equipamentos de Defesa, S.A., e da DEFAERLOC – Locação de Aeronaves Militares, S.A., no prazo máximo de 30 dias;
  • Proceder à reorganização das participações do núcleo naval, mediante a transferência para a Arsenal do Alfeite, S.A., da participação no capital social da Navalrocha – Sociedade de Construção e Reparações Navais, S.A.;
  • Proceder à transferência para o Estado, através da Direção-Geral do Tesouro e Finanças, da participação no capital social da IDD – Plataformas das Indústrias de Defesa Nacionais, S.A.;
  • Concluir o processo de venda da participação na EID, S.A., cujas receitas seriam afectas ao reembolso das dívidas da EMPORDEF, nomeadamente perante a Arsenal do Alfeite, S.A.;
  • Concluir o processo de liquidação e extinção da ENVC, S.A., no prazo de 90 dias, a contar da data da publicação da presente resolução, prorrogável nos termos legais;
  • Promover a alienação dos imóveis disponíveis para venda.

Ora, a 30 de dezembro de 2019, quatro anos, cinco meses, uma semana e seis dias depois, já sob a égide do governo de António Costa, a EMPORDEF continuava em processo de liquidação, conforme é exposto no Despacho n.º 786/2020. Neste despacho também se definiu a reestruturação da IDD – Plataforma das Indústrias de Defesa Nacionais, S.A. (desde 29 de junho de 2020, IdD – Portugal Defence, S.A.) que na prática passou a ser uma holding, tendo assumido, entre outras, todas as participações da EMPORDEF que deveriam ter sido objecto de dissolução, liquidação, extinção e/ou venda. Miraculosamente, em 24 horas, foi registado o encerramento da liquidação da EMPORDEF [verificável no anexo 2 do relatório e contas da IdD, SA, 2019 (na página 84)].

É muito provável que tenha sido a DGTF, como acionista, a assumir todos os encargos financeiros, mas o montante dos mesmos é desconhecido. Isto é o que se sabe:

  1. Apesar da liquidação da holding EMPORDEF ter sido iniciada em 2014, em 2019 continuava por concretizar;
  2. Em 2020, foi criada uma  nova holding IdD – Portugal Defence, S.A., que passou a deter, através de aumento de capital em espécie, as seguintes participações detidas pelo Estado, algumas minoritárias, no sector da Defesa:
    1. OGMA – Indústria Aeronáutica de Portugal, S.A.;
    2. Arsenal do Alfeite, S.A.;
    3. Navalrocha – Sociedade de Construção e Reparações Navais, S.A.;
    4. EEN – EMPORDEF Engenharia Naval, S.A.;
    5. EID, S.A.;
    6. EMPORDEF TI, S.A.;
    7. EDISOFT, S.A.;
    8. Extra – Explosivos da Trafaria, S.A.;
  3. Do conjunto das participações sociais que migraram para a nova holding, encontram-se as detidas pela EMPORDEF, designadamente, as empresas cujos processos de privatização estiveram previstos no PEC 2010-2013 e no Programa do XIX Governo, mas que acabaram por não se concretizar.
  4. Tudo indica que o aumento de capital em espécie seja equivalente a 104 milhões 450 mil euros porque o capital social da IdD, S.A., aumentou de 50.000,00 € para 104.500.000,00 €.

É indesmentível que o XXI Governo não deu continuidade aos processos de privatização do sector da Defesa, previstos or José Sócrates e encetados por Pedro Passos Coelho, processos esses que poderiam ter minorado o impacto de encargos financeiros para o Estado.

Aliás, na linha da experiência passada, o que se verifica é que a “nova” holding mantém os maus hábitos herdados, sendo impossível ignorar que as empresas entretanto privatizadas apresentam uma situação estável, ao mesmo tempo que as empresas que se mantiveram sob gestão estatal, exibem significativas fragilidades, como é notícia, no caso do Arsenal do Alfeite, onde a tesouraria e a falta de encomendas fazem perigar o pagamento de salários e de fornecedores.

Acresce que o escrutínio sobre a liquidação da EMPORDEF continua a exibir elevada opacidade. Aos dias de hoje, não é possível saber qual o prejuízo que o Estado assumiu com a liquidação da EMPORDEF. O apoio técnico da função acionista do Estado (DGTF-UTAM) não divulga a informação sobre estes processos, nem sobre o Sector Empresarial do Estado, datando de 2015 a última informação disponívelEstranhamente, também a instituição superior de controlo, o Tribunal de Contas, que zela pela boa gestão dos dinheiros públicos, não tem apresentado qualquer resultado de auditorias sobre a dissolução e liquidação de empresas públicas, remontando a março de 2005 (relatório n.º 13/2005 – 2ª secção) o último trabalho feito a este nível.

Porém, isto é apenas uma parte do labirinto – um sinuoso e opaco labirinto deliberadamente construído para dificultar a accountability do Estado. Tudo isto está a ser conseguido com a complacência das “pessoas de confiança”, nomeadas e colocadas pelo Governo, nas entidades reguladoras e controladoras do Estado. O Governo chama a isto transparência. Eu classifico como obscurantismo ou capitalismo de compadrio.

Transparência é permitir que qualquer informação sobre a gestão do Estado esteja acessível a qualquer cidadão a qualquer momento.

Por essa razão é imperioso que o governo responda a estas questões:

  • A EMPORDEF foi ou não liquidada?
  • Há um registo de liquidação. Foi executado?
  • Tendo sido, quanto custou ao Estado?
  • Se não foi concluída a liquidação, qual o valor do passivo actual da EMPORDEF?
  • Quem são os seus credores, e qual o montante em dívida aos bancos?
  • Por curiosidade, de todas as empresas referidas, a única que se manteve sob gestão pública foi a Arsenal do Alfeite, S.A. Qual é situação actual desta empresa?

uma vítima sacrificial — BLASFÉMIAS

Sua Excelência o Ministro da Defesa Nacional considera que esta mania de procurar responsáveis, quando as coisas correm mal, obedece a uma lógica «sacrificial», segundo a qual, presumo, tem de haver sempre, nestes casos, um bezerro para a degola pública. Ora, não tendo Sua Excelência vocação para bezerrar, ele nega todas as «responsabilidades» (responsabilidades, o […]

via uma vítima sacrificial — BLASFÉMIAS

Posso estar errado, mas quando um Ministro acredita ser inimputável a governação não é boa.


Nostalgias (2)

O diferendo entre a NATO e a Rússia sobre o novo sistema de defesa antimissil, para a europa, relembra outros tempos.

E, a todos os níveis, outras circunstâncias!


Sinais dos tempos (3)

 

Os comandos e as armas de guerra.

(aqui)


Os mísseis da China

As mudanças da estratégia chinesa! (aqui)


Já não há pandemia

 

A organização Mundial de Saúde (OMS) decretou o fim da gripe A.

Como o Governo já foi avisado que não haverá reembolso, no Outono, devido ao interesse nacional, as vacinas serão integralmente distribuidas aos primeiros a chegar.


Tolerância e paciência

 

Exemplos de tolerância (via O Insurgente) e de paciência (via Fiel Inimigo) no mundo que nos rodeia.


Que citações reflectirão o nosso tempo?

Ninguém duvidará, decorridos sete anos dos trágicos acontecimentos em Nova Iorque, que o mundo se modificou. E não é exagero afirmar, que praticamente por todo o mundo – e em particular nos Estados Unidos – a maioria dos governos optou pela segurança em detrimento da liberdade. Mas, se os tempos são outros, será que ideias expressas outrora são capazes de reflectir os nossos dias?

Dentro de parâmetros análogos, vividos em distintos períodos da história, estas ideias, entre outras, foram declaradas: “Aqueles que prescindem de liberdade por segurança temporária, não merecem nem liberdade nem segurança” BENJAMIN FRANKLIN; “Mas, quando a Constituição de um governo se desvia da liberdade, esta nunca será reposta. A liberdade, uma vez perdida, é-o para sempre” JOHN ADAMS; “A liberdade nunca nasceu do governo. A história da liberdade é uma história de resistência. A história da liberdade é uma história de limitações ao poder governamental, e não do seu aumento” WOODROW WILSON.

Os tempos de guerra não são períodos normais. De acordo com JIMMY CARTER, “às vezes, a guerra pode ser um mal necessário. Mas, apesar da sua urgência, será sempre um mal e nunca um bem. Não é pela matança dos nossos filhos que nós aprenderemos a viver juntos em paz”. No entanto, e apesar de posições divergentes, se tal decisão foi tomada, então devemos apoia-la, caso contrario o custo será enorme. Mesmo quando dela discordarmos. Mesmo após a tomada de más decisões estratégicas.

A opção pelo inicio de operações militares no Iraque sem ter consolidado as previamente desencadeadas no Afeganistão, como aliás demonstram as recentes acções dos taliban, poderá ter um preço muito alto. Estamos agora em duas frentes de guerra e longe de ter qualquer uma controlada. Nesta altura, a questão do Iraque é quase irrelevante quando comparada com a possibilidade do primeiro desaire na história da NATO. Se tal acontecer, o seu preço poderá ser não só a liberdade como também a segurança.

Apesar de uma reflexão sobre acontecimentos passados nos permitir pensar o futuro, não deixa de ser pertinente equacionarmos se os mencionados autores fariam as mesmas afirmações nas circunstâncias de hoje.

Para além dessa ponderação, o problema é que, se não estamos dispostos a prescindir da liberdade em troca de segurança, temos de estar prontos a lutar e morrer por essa liberdade. Consciente ou inconscientemente, uma escolha será sempre feita. Seja como for, até a normalidade ser reposta, as palavras de ADAMS, CARTER, FRANKLIN, e WILSON ecoarão nas nossas mentes.

Não há dúvida que os tempos são de escolhas e que estas fazem as citações dos tempos. Resta saber que citações reflectirão os tempos de hoje.

Público: 3 de Setembro de 2008


Na Encruzilhada: UE, Turquia e NATO

Já foram escritas muitas linhas sobre a possibilidade da integração da Turquia na União Europeia (UE). Mas, numa altura em que as negociações entre as duas partes se arrastam, inclusive estando suspensas em alguns sectores chave, tendo em consideração os acontecimentos vividos no Médio Oriente, em especial no Iraque e às ofensivas do exército turco contra o Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK), não será perda de tempo reflectir um pouco mais sobre este assunto e equacionar alguns cenários.

Devido à importância da sua posição geográfica, a Turquia é, desde 1952, membro da Aliança Atlântica (NATO). Naturalmente que a data atrás referida remete-nos para o período da Guerra-fria. Não sendo a Turquia um país comunista não é estranhar que, juntamente com a Grécia, ambos os países tenham aderido à NATO e, assim, ficaram mais protegidos das tendências expansionistas da ex-União Soviética. Mas só porque a Guerra-fria já acabou com ela também se foram as tendências expansionistas da Rússia?

Há, desde 1725, na Rússia, um documento que, apócrifo ou não, tem influenciado o seu comportamento como Estado. Nem sequer a Revolução de 1917 e a consequente mudança de regime alterou a execução das ideias nele contidas. Refiro-me ao Testamento de Pedro, o Grande. Sendo que a mudança para o sistema capitalista tem acelerado o seu potencial de crescimento, não é de admirar que o germe da expansão se volte a manifestar.

Ora a Turquia, apesar de ser governada por um partido de natureza islâmica, é um Estado laico. São os militares quem garantem que assim continuará a ser. Como tal, se a sua candidatura à UE for adiada e/ou recusada e na hipótese de um regime teocrático ser estabelecido no Iraque, a Turquia passará a estar muito mais receptiva a uma eventual aliança com a Rússia.

Juntamente com a Turquia são potenciais candidatos à UE, países com uma forte presença muçulmana. Refiro-me à Albânia, Macedónia, Bósnia Herzegovina e Montenegro, países que estão geograficamente localizados entre Estados-Membros da UE, a Eslovénia e a Grécia. Como tal, na eventualidade de um conflito que envolva ocidentais e islâmicos, que género de reacções são de esperar das comunidades muçulmanas destes países? Quais são os tipos de ramificações que estas comunidades possuem com as comunidades muçulmanas em França, Inglaterra, Alemanha e Holanda? E que repercussões devemos esperar nos Balcãs?

Por sua vez, na suposição da transformação do Iraque num regime teocrático, países como a Arménia e Geórgia não ficarão sossegados e irão procurar protecção algures. Supondo que esse apoio virá da Rússia, que efeitos terá no xadrez, não apenas regional mas também mundial, uma aliança que una a Rússia, Turquia, Arménia e Geórgia? Pela mesma ordem de razão é claro que, devido à falta de alternativas, o Cazaquistão, Azerbeijão, Turquemenistão, Quirguistão, Tajiquistão e Uzbequistão também poderão aderir a essa coligação. Afinal, para além da protecção recebida estes Estados também conseguem impedir a sua transformação em regimes teocráticos de matriz islâmica. E, de todos estes países, qual é aquele que, devido ao seu passado histórico, está mais vulnerável a esse cenário? A Turquia, sem dúvida nenhuma.

Convém não esquecer que resultante da sua acção diplomática, particularmente sentida no âmbito da Organização de Cooperação de Xangai, a Rússia foi capaz de recuperar muita da sua anterior influência na região.

E, no que respeita a prováveis perspectivas para o Médio Oriente é prudente ter em mente que o Hezbollah ainda não desistiu do seu sonho de transformar o Líbano num Estado teocrático, que do cenário de guerra civil que se vive no Iraque pode muito bem também emergir um regime teocrático e que o Irão [rodeado por potências nucleares (Rússia, China, Paquistão, Índia e Israel)] não vai abandonar o seu programa nuclear pacificamente. A concretização de qualquer uma destas hipóteses não augura um aliviar de tensão entre ocidentais e árabes. Antes pelo contrário.

Assim, é de considerar que uma adesão da Turquia à UE pode alterar as jogadas do xadrez e teria, entre outras, duas vantagens fundamentais: A primeira, de nível psicológico, permitiria à UE abalar as ideias de superioridade segundo as quais é perspectivada, pelos povos árabes, ao aceitar no seu meio um país de matriz islâmica; a segunda, marcadamente estratégica, tornaria o território da Turquia numa espécie de zona tampão.

No entanto, dificilmente será consensual qualquer decisão que venha a ser tomada neste assunto. Tanto politicamente como historicamente. E, muito recentemente, o Presidente francês reafirmou a sua oposição à entrada da Turquia na UE.

Mas, será que a integração da Turquia na UE sem direito, pelo menos durante um período de tempo nunca inferior a dez anos, às prerrogativas do acordo de Schengen é prejudicial? E qual será o custo da sua não entrada?

Público: 28 de Julho de 2008


Valores, Cidadania e Segurança Nacional

Tendo em mente os diversos enquadramentos considerados numa análise à temática da Segurança Interna, optamos por uma pequena ponderação sobre a relação entre os valores, a cidadania e a defesa nacional.

Não é possível continuar a ignorar determinados comportamentos porque estes começam a ameaçar a sociedade e, consequentemente, a penhorar o futuro da nação.

O ritmo de vida específico da sociedade ocidental implica que, devido à sua exigência, os pais dispõem de menos tempo para seguir crescimento dos filhos. Necessariamente, aqueles “delegam” aos professores a tarefa da educação dos seus descendentes, esperando que, para além de conhecimentos, também lhes sejam transmitidos os valores e as regras da coexistência social basilares para a educação cívica.

Tal implica que cabe aos docentes disciplinar os alunos, mas quando os professores são confrontados com a necessidade de admoestar e/ou sancionar o comportamento dos discentes, os primeiros a expressar-se contra tais opções são os progenitores.

É, no mínimo, curioso observar que, no que se refere à cidadania e à concomitância social, parece prevalecer uma tendência natural, alicerçada numa posição individualista, em considerar que nós, percepcionados na primeira pessoa, temos Direitos e que os restantes, encarados na terceira pessoa, apenas Deveres.

É, por isso, importante salientar que a cidadania não se esgota no conjunto de Direitos e Deveres concedidos pela lei. Para que a cidadania seja plenamente alcançada é fundamental um elemento fulcral: o exemplo dos pais. Este chega-nos pelas mais variadas formas, quer seja através da formação recebida em família, quer pela disciplina, ou ainda, quer pela transmissão dos valores característicos do núcleo familiar. Estou a referir-me aos “laços” familiares que são comunicados de geração em geração e que são indispensáveis para a formação da personalidade. Ora, se os pais estão ausentes também os valores o estarão. Por mais aptos que sejam, não serão os professores quem deve suprir as insuficiências originadas por essa ausência porque nenhum docente pode ou deve substituir um pai. No limite, são um complemento dos pais.

Certamente que não é só de agora mas, ultimamente, o número de agressões de alunos a alunos e de alunos a professores aumentou preocupantemente. De acordo com o divulgado pelo Observatório de Segurança Escolar, durante o ano passado foram comunicadas, pelas escolas ao Ministério da Educação, 390 casos de agressões a docentes, sendo que as mesmas foram praticadas ou pelos discentes ou por encarregados de educação. É igualmente inquietante que, apenas num hiato temporal de dois meses, a linha SOS professor tenha recebido 68 pedidos de ajuda, todos eles referentes a problemas entre professores e alunos ou familiares destes.

Ora, um jovem que agride um colega e/ou um professor é muito bem capaz de atacar um progenitor. E imanente à figura de um pai e/ou professor está a autoridade, pelo que, também não é de estranhar o aumento, registado pela Guarda Nacional Republicana e pela Polícia de Segurança Pública, dos delitos contra agentes da lei. Seguindo esta lógica, não é disparate nenhum considerar que também a autoridade do Estado é e/ou será desrespeitada e que os valores de ligação ao país se esmaeçam.

O crescimento da indisciplina e da agressividade dos jovens é um fenómeno em efervescência. Se não for devidamente analisado poderá colocar em causa, num futuro não distante, a segurança interna do país. Que devemos então fazer? Atrevo-me a sugerir o seguinte, sendo que estas sugestões não passam disso mesmo, uma hipótese.

Fruto da acção das juventudes partidárias, da conjuntura internacional vivida na época e muito provavelmente, a factores económicos, o serviço militar obrigatório (SMO) / serviço efectivo normal (SEN) foi terminado. O serviço militar é agora voluntário, i.e., profissional. Dificilmente deixará de o ser. Mas, nos dias de hoje, quais seriam as vantagens de um SMO, ou pelo menos, de uma recruta obrigatória? Para os jovens, representaria:
1- Formação cívica e profissional (para alguns, a última oportunidade);
2- Consciencialização dos valores da defesa nacional;
3- Experiência de vida num ambiente de disciplina;
4- Enriquecimento pessoal e humano.
Por sua vez, para o Estado seria, através da consolidação do seu capital humano, um pilar para manutenção do futuro.

A participação em programas de apoio cívico e social seria outra possibilidade. Mas era necessário que essa participação fosse compulsiva e não facultativa. Qual é o objectivo adjacente a esta particularidade? Simplesmente fazer com que os jovens percebam que a vida não é fácil e que nem sempre podemos fazer o que queremos.

Actualmente, devido às circunstâncias acima descritas, o contacto entre os jovens e os diversos ramos das Forças Armadas, resume-se ao dia da defesa nacional. Apesar do mérito de tal iniciativa, parece-me que a duração da mesma é manifestamente insuficiente. E os moldes em que está formatada significam que nem todos os jovens usufruem desse contacto.

Países como a Bélgica e a Holanda, quando confrontados com as mesmas realidades que levaram ao fim do SMO no nosso país, decidiram implementar programas de forma a permitir com que todos os jovens tivessem um contacto efectivo e positivo com as Forças Armadas. Estes projectos, realizados em parceria com os respectivos Ministérios da Educação, fazem com que, nos últimos anos do ensino obrigatório, militares especialmente preparados para o efeito se desloquem às escolas para ministrar palestras e coordenar exercícios práticos com os jovens. O contacto que estes recebem da instituição militar não se resume a um dia e os benefícios daqui colhidos são multidisciplinares. A aplicação destes exemplos é outra hipótese a considerar.

As ameaças à segurança interna não resultam apenas dos novos actores transnacionais. Há outros géneros de cominações que devem ser equacionadas. Nos dias de hoje, o último baluarte dos valores reside na instituição militar. Promover e incrementar o seu convívio com a juventude é primordial, porque, na essência, a cidadania e a defesa nacional são valores.

Os pressupostos inerentes ao objectivo do “sucesso escolar”, que faz com que os professores tenham que passar todos os alunos sem qualquer tipo de exigência qualitativa, traduziram-se na efectiva perda de autoridade dos docentes e na consequente perda de respeito dos discentes. Alterar o “Estatuto do Professor” para reforçar a autoridade dos docentes e dos órgãos directivos das escolas é um passo no sentido certo, mas pode não ser suficiente. Também há que incluir, na estrutura curricular dos alunos, matérias como o civismo e a cidadania. E acima de tudo, se um aluno não sabe não deve transitar de ano. Os jovens de hoje serão os líderes de amanhã. Que tipo de dirigentes estamos a formar?

O Estado não é apenas o território, o povo e os seus órgãos políticos. Valores também são a nação. Aliás, são os valores que a sustentam. Sem estes, não haverá substância nem auto-estima. Sem estes, o Estado soçobrará.

E os caminhos para a segurança e para o futuro da nação portuguesa só dependem de nós.

Vicente Ferreira da Silva
Publicado na Cidadania e Defesa n.º 24 Março/Abril de 2007


Repensar perspectivas

A época actual, no que respeita a temáticas relacionadas com relações internacionais, geopolítica, geoeconomia, etc., está a revelar-se muito interessante.

Consideremos a problemática dos centros de influência mundial. Primeiro, se recordarmos os tempos da Guerra fria, lembraremos que o mundo esteve bipolarmente dividido, em dois blocos, com a predominância de duas superpotências, os Estados Unidos da América (EUA) e a União Soviética e as respectivas conexões de sistemas; segundo, com o colapso do sistema soviético, globo passou a ter uma única superpotência, os EUA; e, terceiro, devido ao desenvolvimento, particularmente económico, daí decorrente, qual Fénix renascida, a divisão bipolar parece estar a regressar.

Quais são as diferenças que podemos observar? Se a nossa análise se focalizar na geopolítica, é facilmente perceptível que a predominância do Atlântico é transversal aos três períodos acima mencionados. No entanto, se os pressupostos de observação forem geoeconómicos, então a bipolaridade é mais inteligível, pois notamos que apesar do centro político mundial ainda permanecer no Atlântico, o centro económico mundial mudou-se para o Pacífico.

Por outras palavras, a globalização teve a consequência de provocar uma dissonância no binómio político/económico e fez com que o mundo contemporâneo seja geopoliticamente visto a partir do Atlântico e geoeconomicamente observado do Pacífico.

A crescente capacidade económica de países geograficamente localizados no Pacífico ou na orla deste, nomeadamente no Índico, coloca algumas questões. Afinal, não é só nos nossos dias que riqueza é poder. Todo e qualquer exemplo histórico de expansão pode ser utilizado para ilustrar esta afirmação. Consequentemente, a possibilidade de uma transferência do centro político mundial para esta região deve ser, pelo menos, encarada e pensada.

E só esta hipótese já levanta problemas consideráveis. Senão vejamos. No caso de uma efectiva deslocalização dos pólos, político e económico, de influência mundial para o Pacífico, no que concerne à transferência dos centros de decisão políticos transatlânticos e internacionais para as imediações para aquela região, os dos EUA serão facilmente deslocáveis, mas para os das Nações Unidas a dificuldade será maior e os da União Europeia (UE) serão quase impraticáveis.

Mas, para já, ainda mais relevante é reter que a União Europeia, que é uma potência económica mundial, terá que se afirmar num mundo economicamente centrado no Pacífico, ou seja, fora da sua zona geográfica, cenário que acontece pela primeira vez na sua história.

Só segundo os prismas acima referidos as elações já são interessantes, mas concomitantemente, também devemos ponderar o ressurgimento da Rússia no palco mundial e a afirmação do Irão como potência regional, e, se preferirem, examinar este mundo com dois centros de decisão distantes segundo as tensões religiosas e as dinâmicas civilizacionais.

Ficará para outra altura a abordagem a esta problemática de acordo com estas duas últimas perspectivas. Por agora, ficaremos pela óptica que temos vindo a desenvolver.

E, na nossa opinião (que já anteriormente defendemos e sustentamos em outros fóruns), para contrariar esta tendência, a Aliança Transatlântica precisa de evoluir no sentido da sua vocação, i.e., uma vez que valores universais estão na sua génese, é chegada a altura de efectivar essa aptidão e de se transformar numa organização mundial.

Há muito mais em jogo do que o aqui considerado. Nos tempos que passam, repensar perspectivas não é um mero exercício intelectual. É uma obrigação. Só assim estaremos preparados quando as probabilidades se concretizarem.

16 de Maio de 2008 – O Primeiro de Janeiro


Metamorfoses democraticas e “guerras energéticas”

Num universo de mundos paralelos, vamos dar asas à imaginação desenvolvendo dois pequenos cenários: No primeiro, abordaremos a democracia na Rússia. No segundo, uma eventual guerra por energia.

1. A sequência de acontecimentos vividos na Rússia democrática parecem estar a surpreender muita gente. Ou melhor, a aparente impunidade com que certos factos ocorrem, sem que nada o possa impedir. O triunfo de Dimitri Medvedev, nas recentes eleições presidenciais, é um exemplo disso. E, apesar dos ecos dos observadores internacionais que referem que este acto eleitoral não decorreu conforme as regras democráticas, particularmente, no que respeita ao tempo de antena de televisão, Medvedev irá tomar oficialmente posse como Presidente Russo.

Os contornos desta ocorrência assemelham-se a um déjà vu. Num mimetismo praticamente perfeito, quase revivemos o ano de 2004. E, naturalmente, na comemoração da vitória, o sujeito principal é o mesmo dos últimos 9 anos, Vladimir Putin.

Putin, Primeiro-ministro recém-eleito, afirmou que não haverá atritos, entre ele e Medvedev, no que se refere à governação do país. Nada de estranho. Afinal, aquele é o guia ou mentor deste. No entanto, não é possível estar sempre de acordo com alguém todos os dias. Como tal, a possibilidade de, mais cedo ou mais tarde, Medvedev deixar de ser uma marioneta de Putin é de considerar. Mas seja por este motivo ou por qualquer outro, a questão que se deve colocar é: será que nos próximos tempos iremos revisitar o acontecimento russo de 31 de Dezembro de 1999?

2. A emergência de novos países, que se confirmaram como potências económicas na cena internacional, acentuou a procura por hidrocarbonetos, recursos energéticos finitos, a nível mundial.

Em 2006, as reservas mundiais de petróleo estavam assim distribuídas: 95% no território de 20 países, desde a Arábia Saudita à Índia, e, no resto do mundo, os remanescentes 5%. Segundo a Associação para o Estudo do Pico do Petróleo e do Gás, o pico do petróleo (modelo matemático do geofísico M. King Hubbert que analisa a extracção e o consumo de petróleo convencional) será atingido daqui a 2 anos, em 2010, não sendo de estranhar a constante especulação em torno do valor do barril de petróleo.

Para uma cultura inteiramente dependente de energia fácil e barata, um decréscimo acentuado na produção e armazenamento de hidrocarbonetos terá consequências astronómicas. Ora, é comummente aceite pelos peritos que o petróleo convencional está praticamente esgotado e que as maiores reservas disponíveis (águas profundas, polar, pesado e de areias betuminosas) são também as mais dispendiosas, tanto a nível da sua extracção como de produção.

Aqui vislumbra-se o grande interesse pelo fundo do Oceano Árctico que várias Nações demonstram e disputam. Claro que nem todas têm a capacidade tecnológica para o explorar. Mas isso não é obstáculo. E, partindo destes pressupostos, também não é fantasia considerar que, se a energia não chegar para todos, alguns irão fazer uso da força para a adquirir ou deter.

Não é apenas a vertente económica que está em jogo. A competência de aplicação e de utilização do poderio militar é que será o cerne da questão. E, muito friamente, à medida que os hidrocarbonetos se esgotam e consomem, antes nós do que os outros.

Sem alternativas energéticas credíveis, paira, ou não paira sobre nós, o espectro da guerra?

6 de Março de 2008 – O Primeiro de Janeiro


Interesse Nacional

Recentemente, tive a sorte de ter sido seleccionado para o Curso de Defesa Nacional (CDN), que o Instituto da Defesa Nacional (IDN) proporciona anualmente. Fui um dos auditores que terminaram CDN 2006/2007.

Para aqueles que não acompanham, ou gostam, destas temáticas, digo-vos que se trata de um autêntico privilégio. A possibilidade de ter acesso a determinadas matérias e de ouvir e conversar com personalidades informadas, é algo que, para além de não acontecer todos os dias, nos permite adquirir conhecimento esclarecendo ou confirmando dúvidas até então não convenientemente respondidas.

Ao longo do CDN, são abordados variados temas que gravitam na órbita da defesa nacional. O interesse nacional é um desses assuntos. É precisamente sobre essa rubrica que incide esta reflexão. Para tal, farei uso de algumas palavras e questões que resultam de cogitações feitas, durante o CDN, por grupos de trabalho onde estive inserido.

De que falamos quando mencionamos o interesse nacional? À primeira vista, do interesse de todos nós. Mas, na realidade, a expressão remete-nos para a Nação, ou se preferirem, o Estado que determina o nosso interesse. Então, primeiramente, estamos a referirmo-nos a uma concepção política, onde o todo da sociedade – social, jurídico, económico, etc. – é englobado. Como tal, o tangível e intangível, i.e., o corpóreo e o incorpóreo é aqui considerado. Por outras palavras, as características físicas, humanas, culturais e morais que dão forma a uma determinada sociedade e que nos identificam como nós, distinguindo-nos dos outros.

Ora, até aqui já aludimos vários prismas. Exemplifico, fazendo uso das ponderações feitas no CDN. “Será que ser juridicamente cidadão de um determinado Estado atesta «per si» uma forma de ser, de sentir e de olhar a vida e o mundo que nos distingue dos demais? Ou será que tal depende de se viver uma cultura, uma língua, uma história, uma determinada situação geográfica, que determinam um conjunto de características económicas e humanas próprias de cada Estado? Ou ainda, em consonância com os acordos internacionais, serão apenas os órgãos políticos do Estado que têm a capacidade para determinar o que é interesse nacional? Ou o manto ontológico nacional brota dos valores que o Estado defende e promove e que seus cidadãos assumem e incorporam?”.

O Estado, a Nação, resulta da opção dos seus cidadãos. Por um processo de agregação e por uma organização específica. Assim, apesar do leque de abordagens à ideia de interesse nacional, é incontornável o seu perfil político. Claro que para tal, é necessário que haja uma definição de interesse nacional. A não elaboração desse conceito é altamente prejudicial, pois trata-se de um instrumento de aglutinação dos cidadãos aos valores nacionais.

“Interesse nacional é tudo aquilo a que o Estado dá importância primordial, pelo que tudo fará para o proteger e incrementar”. Laura Neack dá-nos uma enunciação simples mas concludente. No limite, é precisamente isto que um cidadão individual faz, ou procura fazer.

Esta concepção, por sua vez, leva-nos para várias coordenadas. Inclusive para as do espaço e do tempo. Espaço interno e externo. Tempo, porque tudo evolui. E, se adicionarmos a estes factores as já referidas características físicas, humanas, culturais e morais, encontramos a estrutura e a conjuntura. Ou seja, os parâmetros que delimitam a definição de interesse nacional: o permanente e o actual. Dito de outra forma, os vectores do interesse nacional.

O Portugal de hoje não é o mesmo de há 30 anos. E o mundo também. As regras de vinculação política e jurídica que estabelecem os limites do nosso interesse nacional já não são, na sua grande maioria, elaboradas no nosso país. Muito naturalmente, o primeiro vector do nosso interesse nacional devia ser a constituição de um lobbie activo e eficaz no lugar onde se encontram as fontes de decisão das nomenclaturas política e jurídica. Disse que a não feitura de um diploma onde conste a descrição do que é interesse nacional era nocivo. Na minha opinião, para o nosso país, a ausência de uma presença, ágil e capaz, em Bruxelas pode ainda ser muito mais lesiva.

E igualmente é minha convicção que é do interesse nacional que o IDN continue a existir e a realizar o que tão bem sabe fazer.

30 de Agosto de 2007 – O Primeiro de Janeiro


A (de)pendencia da defesa europeia (III)

Com esta terceira, e última, parte de considerações versando a temática da questão da defesa europeia, é apropriado fazer uma recapitulação das perspectivas abordadas nas duas anteriores reflexões.

Primeiro, vimos que as oscilações observadas nas relações entre os Estados Unidos da América (EUA) e a Rússia têm profundas implicações na Europa. Segundo, que a Europa hoje é o que é porque os EUA continuam a defender-nos.

Igualmente observamos que o mundo não é idealista, mas sim realista. E que a Aliança Transatlântica, razão de ser do mundo de hoje, terá que se adaptar num planeta centrado no Pacifico. Para tal, é necessário que ambos os seus pólos sejam fortes tanto económica como militarmente.

Por isso, não são suficientes as reformas, programas e iniciativas que foram implementadas pelos dirigentes da Aliança Atlântica (NATO) na Cimeira de Praga de 2002. Tendo em vista que a NATO deixou de estar geograficamente limitada, que os vários contingentes europeus que integram as forças da Aliança no Afeganistão irão sofrer mais baixas ao ponto de afectar seriamente opinião publica europeia e considerando a possibilidade de um falhanço dos objectivos delineados para a Força Internacional de Assistência à Segurança (ISAF), não podemos deixar que mesquinhices nacionais afectem a coesão europeia e que, consequentemente, abalem a ligação euro-atlântica. Como tal, era muito importante que a União Europeia (UE), e não somente alguns dos seus Estados-Membros, tomasse diligências concretas neste domínio, como a criação de uma verdadeira política comum de defesa. Tal posição representaria um sinal inequívoco que a Aliança Transatlântica é constituída por dois pilares decididos e coesos.

Mas não é somente este cenário que devemos brandir como argumento. Também não devemos descurar as intenções que alguns (Al-Qaeda, Taliban, Bin Landen, Hezbollah, etc) manifestam pela destruição dos princípios e valores que nos identificam. E igualmente não são de descartar as ameaças económicas e o risco que a ausência do poderio militar significam quando confrontados com alianças geoeconómicas, mesmo que temporárias, como as verificadas entre Pequim, Teerão e Moscovo.

Por sua vez, os diversos alinhamentos políticos que se verificam entre os grandes Estados-membros da UE face ao poderio alemão, em virtude do novo sistema de votação, levantam fantasmas do passado. Haverá o risco do reacendimento dos antigos ódios nacionalistas e novas divisões fracturantes na Europa? Felizmente que aqui, mais uma vez, será o vínculo transatlântico que proporcionará o pender para o equilíbrio e para a manutenção do diálogo intra-europeu.

A Europa, e tudo que ela representa, é algo por que vale a pena lutar e morrer. Martin Luther King, Jr., disse: “Se um homem não descobriu nada pelo qual morrer, não está pronto para viver”. Não me parece que abdicar de parte do investimento na esfera económica e social em prol da defesa e segurança, que permite a manutenção do nosso modo de vida, seja realmente pernicioso.

Para a Europa, o aumento do investimento em defesa não é apenas uma questão de afirmação internacional. Também é um imperativo para a sua sobrevivência e para a manutenção do seu nível de vida. Mas não só, porque ao analisar as circunstâncias que caracterizam o mundo, percebemos que tal decisão pode ser fundamental para o futuro da Aliança Transatlântica e, quiçá, da civilização ocidental. E o futuro, como nos ensinou Mohandas Gandhi, depende do que fazemos no presente.

Em suma, o tempo, para a Europa, é de consolidação dos mecanismos e meios que permitam a continuação da sua afirmação num mundo em convulsão. Ou seja, a Europa não deve ficar dependente, nem de outros nem das diferentes preferências que cada um dos seus Estados-membros tem.

E, como muito bem disse Francis Bacon, “Escolher o tempo próprio é ganhar tempo”.

16 de Agosto de 2007 – O Primeiro de Janeiro


A (de)pendencia da defesa europeia (II)

Já vinha de trás, mas a perda da primazia europeia no palco mundial deu-se definitivamente após a segunda grande guerra. Apesar de ser parte no lado vencedor da guerra, a Europa, principal campo de batalha do conflito mundial, estava completamente de rastos. Necessitava de se reconstruir e também de precaver futuras altercações entre os países europeus.

O auxílio norte-americano também aqui foi precioso e a constituição da North Atlantic Treaty Organization (NATO) tornou-se numa peça fundamental na elaboração da Europa pós-guerra. Ajudando, tanto aliados como inimigos, os Estados Unidos da América (EUA) lançaram as bases – e o exemplo – que veio a efectivar o entendimento franco-alemão e, consequentemente, uma nova Europa unida e convergida em objectivos comuns.

Contudo, se tal sentido foi conseguido nas áreas económica, social e política, não foi passível de obtenção, sem a presença dos EUA no seu meio, na área militar. Note-se o fracasso da Comunidade Europeia de Defesa. Assim, foi para a NATO que se transferiram a maior parte dos aspectos englobados nessa temática. Por outras palavras, os norte-americanos defendiam-nos.

É curioso notar que sessenta anos depois, os inimigos de ontem são os aliados de hoje. Mas apesar da estreita aliança que liga os EUA ao Japão e da protecção militar que aqueles dão a estes, o Japão dá sinais de uma insatisfação relativamente ao disposto no artigo IX da sua Constituição. Ora este artigo, para além de estipular o limite de gastos até 1% do PIB em aquisição de equipamentos destinados à defesa também impede o Japão de declarar guerra a outro Estado.

Os mesmos pressupostos são visíveis na base da recuperação europeia. Foi a capacidade de defesa norte-americana e o seu «compromisso» em nos proteger que viabilizou a nossa ascensão económica, pois uma vez que não tivemos necessidade em dispensar quantias consideráveis em defesa canalizamo-las para o crescimento económico e para o bem-estar social. No entanto, se os Estados europeus mantiveram as suas capacidades tout court, não parecem minimamente preocupados com a sua dependência militar, apesar do mundo estar a transformar-se.

O que é que nos diz a história? Que se repete. E a humanidade? Que aprende pouco. Reiterando as questões, respondo fazendo uso das palavras de Charles Snow, “a história não tolera as derrotas” e de Jonathan Swift “como é possível esperar que a humanidade ouça conselhos, se nem sequer ouve as advertências”.

O mundo altera-se e o seu centro desloca-se para o Pacifico. A regra vigente é que não há regras. As ameaças são transnacionais e as guerras são assimétricas. Então, podemos dar-nos ao luxo de ignorar a defesa e a segurança? Nos dias de hoje não basta ser economicamente forte. Num planeta centrado no Pacifico, a aliança Transatlântica precisa de ter dois elos resistentes, tanto económica como militarmente. Para além disso, nós, europeus, não podemos estar sempre a contar com as garantias dos outros. Também temos que as prestar.

Wu Ch’i (430 a.C. – 381 a.C.) disse: “A forma de manter o país seguro está na precaução”. Hoje, mais do que nunca, a precaução é uma responsabilidade. E para a Europa não é perda de tempo ou de recursos investir mais em defesa e segurança. Afinal, não é apenas o interior das nossas casas que devemos proteger. Também o local onde as edificamos deve ser protegido.

Por sua vez, George Bernard Shaw disse: “O homem razoável adapta-se ao mundo; o homem que não é razoável obstina-se a tentar que o mundo se lhe adapte. Qualquer progresso, portanto, depende do homem que não é razoável”. Para o melhor e, infelizmente, para o pior, tal é verificável.

Como a improbabilidade tem a propensão para se transformar numa possibilidade que mais cedo ou mais tarde é uma inevitabilidade, é chegada a altura de o homem razoável servir de contraponto ao homem que não é razoável.

2 de Agosto de 2007 – O Primeiro de Janeiro


A (de)pendencia da defesa europeia

As ocorrências nas relações entre os Estados Unidos da América (EUA) e a Rússia, por causa do escudo anti-míssil, e os seus efeitos na temática da defesa europeia merecem alguma reflexão.

A concepção de um guarda-chuva contra um ataque de mísseis balísticos intercontinentais não é nova. Data da década dos anos 60 do século passado e, apesar de ter sido recusada pelo então Secretário de Defesa dos EUA, Robert S. McNamara, nunca foi completamente esquecida. É precisamente aqui que encontramos a génese do programa “StarWars” que o Presidente Ronald Reagan, em 23 de Março de 1983, no seu discurso sobre segurança nacional, anunciou à Nação americana e ao mundo.

Após o colapso da ex-União Soviética, a perspectiva geopolítica mundial alterou-se e, em 1999, na revisão do conceito estratégico da Aliança Atlântica (NATO) o tema foi alvo de breve alusão, apenas no que respeitava às eventuais ameaças sobre os destacamentos de forças. Com os atentados de 11 de Setembro de 2001, os EUA abandonaram unilateralmente as convenções internacionais que proibiam o desenvolvimento deste tipo de sistemas e iniciaram a construção que um escudo contra eventuais ataques de países inimigos (Irão e Coreia do Norte). Os europeus, na Cimeira de Praga de 2002, aquiescendo com as propostas norte-americanas, foram dizendo que talvez não fosse má ideia pensar na problemática da protecção anti-míssil.

Ao contrário do que se verificou com as administrações norte-americanas e a administração Yeltsin, as relações entre a administração Bush e a administração Putin foram sempre tensas. Se o alargamento da NATO foi sempre visto com alguma desconfiança, a entrada dos Estados Bálticos na Aliança e as posições da actual administração dos EUA, no que respeita ao Iraque, Ucrânia, Bielo-Rússia e Geórgia, só serviram para aumentar essa suspeita. Alexei Arbatov (Vice-presidente do partido YABLOKO e membro da Academia de Ciências Russa) ao referir-se sobre a defesa anti-míssil afirmou que não há argumentos que convençam os russos que os projécteis a colocar na Polónia não são ameaça, pois estes só o perspectivam como tal. Igualmente refere que, contrariamente à sua posição de intolerância sobre a proliferação nuclear, com a instalação desses mísseis interceptores os EUA estão a aceitar que o Irão desenvolva armas atómicas ou não teriam a necessidade de se defender delas.

Porque é que a proposta de utilização do radar que a Rússia possui no Azerbeijão (Gabala) não é suficiente? Usualmente são três as fases do trajecto de um míssil balístico: Boost, mid-course, e terminal. Ora, o radar russo apenas faz a detecção de lançamentos e o sistema norte-americano, para além de a requerer também implica o seguimento para intercepção do alvo durante a 2ª fase do percurso, que é mais longa e onde a trajectória já está definida. Um sistema deste tipo visa a destruição do engenho, por uma “defesa sucessiva por camadas”, durante as duas primeiras fases do voo através de uma intercepção e não por uma perseguição ao alvo.

Então, para a Europa, que tipo de impacto provoca a elaboração de um sistema deste género? Uma vez que a construção do escudo anti-míssil que os EUA pretendem efectivar implica a colocação de dois dispositivos, um radar raios X e dez mísseis interceptores, em dois dos países europeus que durante a Guerra-fria estiveram para lá da Cortina de Ferro, respectivamente na Republica Checa e Polónia, os europeus devem considerar as implicações político-militares que emergem da utilização do território europeu para concretização de tal escudo: a segurança interior da Europa e o contacto exterior, i.e., diplomático, particularmente com a Rússia.

Qual é o risco, para a segurança europeia, da atitude tomada por Vladimir Putin de suspensão do Tratado sobre Forças Convencionais na Europa (FCE)? Respondendo à questão, convém lembrar que um dos pilares fulcrais da segurança e estabilidade europeia é precisamente o FCE. Foi através deste instrumento que a redução dos armamentos convencionais foi negociada e que foi estipulado um mecanismo de inspecções recíprocas e de comunicação mútua de grandes manobras militares que visavam o melhoramento da confiança Este/Oeste. Para além das suposições implícitas nesta suspensão note-se que, recentemente, a Rússia lançou o “Yury Dolgoruky”, o primeiro de uma nova classe (Borei) de submarinos de mísseis balísticos.

O mundo em que vivemos é regido pelo realismo e não pelo idealismo. Para a Europa, talvez fosse prudente um reequacionar das suas capacidades militares e das suas políticas de defesa.

19 de Julho de 2007 – O Primeiro de Janeiro